Desespero

quinta-feira, 25 de março de 2010

(...)"Naturalmente, Angústia". "Como naturalmente? Supões que surgimos, de rompante, na vida destes miseráveis? Que somos génios maus emersos da lama?". "Sim. Crepitamos nas margens dos seus sonhos, debruamos a negro as suas vontades e desafios. E, acima de tudo, queremo-los frágeis". "Mas não te questionas acerca do teu próprio propósito? Nunca te sentiste tentado a reflectir acerca do sentido da tua existência?". "Eu? Que estupidez. Nós não somos capazes de reflectir. Somos meras impressões lunares, damos-lhes a ilusão de serem capazes de pensar, de estarem aptos a tomar o controlo das suas vidas e a dirigir um destino menos macabro que aquele ao qual estão inevitavelmente votados". "Já te ocorreu, certamente, a possibilidade de não sermos aleatórios, de fazermos parte de um grande plano cujos contornos desconhecemos e no qual desempenhamos um papel pouco relevante...". "Sim. Já me ocorreu. E, pouco depois, essa suspeição desapareceu. Mesmo que isso seja verdade, os arquitectos desse plano não poderão sopesar a sua obra durante muito tempo. É que estes seres abomináveis têm uma qualidade estranha, uma condição, dir-se-ia, virtuosa". "De que falas?". "Da sua capacidade de impregnar os seus correligionários de memórias, ideias, sensações. Sinto-o. Quando inquino os pensamentos de um deles, cindo-me em partículas inumeráveis; vejo um clarão; e, de súbito, acho-me nas partículas ônticas do outro, dos outros e de outros, de todos eles, como uma mente-colmeia, ligada como pequenos veios pulsantes". "Agora que falas nisso, também o sinto. É uma impressão estranha: parece dar-nos força, mas sinto que é um vigor canibalístico; essa dispersão acaba por cansar-nos, esgota-nos e eles, imperceptivelmente, voltam a laborar, como pequenos operários, na nossa destruição". "Sim, Desespero. É que nós, como pequenos espiões da Noite, estamos, como os nossos hóspedes, condenados. Por isso, devemos esconder a possibilidade dos arquipélagos: se eles se sentirem ilhas, viveremos mais."

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