O esperador

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Perguntam-me pela solução. Não sei qual é. Não sei como resolver todos os crimes do mundo, e não sei como carregar todo o peso do universo nas minhas vértebras requebradas. Este é o nosso fado: carregar um peso que não compreendemos, não conseguimos justificar e não sabemos desfazer.

A cada dia que passa, estamos mais divididos. Uns assentam em piso sólido, outros remanescem em solidões líquidas, atravessando desertos incorpóreos, à espera de alguém que lhes toque no ombro e possa guiá-los para casa.

Mas nós já não temos casa. Nos nossos ombros, só a esperança e o desespero podem tocar. Suprema ironia: se o fizessem, não poderíamos compreender a sua linguagem apocalíptica. Para nós, o Inferno não é o Apocalipse; as chamas de Satã só suscitam esgares de desprezo, porque nos furtaram a imaginação e não nos deram, em troca, vontade de poder.

E, ainda que eu soubesse ler destinos, ficaria aquém do nosso destino, recôndito no horizonte.

Não sei o que faremos, porque já nem sequer nos perdemos. Já abandonámos a ideia de perdição, de estar perdido em nenhures ou algures. Para estarmos perdidos, precisamos de uma ideia de caminho e meta. Eu não tenho esse caminho. Muito menos essa meta.

Não temos trabalho. Não temos garantias. Sem trabalho, não podemos aceder à formação que garante a tão propalada "aquisição" de "competências". Enquanto alguns se dão ao luxo de criticar as ideologias com as quais se miscigenam - aproveitando oportunidades, multiplicando redes e demonstrando a vantagem de manter a leveza em todas as situações -, outros ficam nas margens, à espera.

Existe a profissão de esperador? É isso que sou. Talvez devesse sentar-me, conformado. Creio que já não sei escrever, não com galhardia e estranheza suficientes para singrar nesse mundo. Também não sei nada de concreto, pelo que nada de concreto me espera. E os dias deslizam, esgotados.

Sim, talvez seja um esperador. Já não fazemos parte do cortejo, fomos relegados para as varandas e os becos sórdidos do esquecimento. E, ainda que algumas más consciências se recusem a reconhecê-lo, gente como eu está fadada à indefinição. Nascer na época errada é um estertor tão banal como outro qualquer; como beber uma cerveja na noite errada; como dar um beijo na pessoa errada; como desperdiçar a oportunidade errada.

Assim, contamos os tostões, esperando que a justiça entre, porta adentro, rectificando todos os desmandos. Mas ela insiste em não aparecer. Pelo contrário, a sua ausência teima em demonstrar quão pouco ajustado sou, e quão difícil é recusar a sorte. Vivo no meu país, no reino do "devia", enquanto pressinto o esvaimento da parca dignidade que nos resta. Até lá, não procuro soluções. Os problemas procuram-me, e não me sinto obrigado a metamorfosear-me em profeta - não quando colijo as alternativas e todas se cinjem à espera. Porque não tive a desfaçatez de dizer algo em dada altura; ou porque não soube aproveitar tal oportunidade em tal altura; ou porque não fiquei calado em dada altura. Sempre a questão das alturas e da conveniência.

Honestamente, nada me comprazeria mais que atirar a conveniência e propriedade do alto de um arranha-céus. As Amoreiras, de preferência, ou um qualquer mamarracho simbolizador de quão pouco aleatória é a existência do privilégio e da segurança.

Gastaria todo o meu paiol vernacular a escarnecer da pena e da preocupação com que as minhas diatribes são recebidas e relativizadas, se isso servisse para efectuar um programa alargado de reality checks, mas creio que não desperdiçarei tal vernáculo - deixo os Catch 22 para quem os pode ou quer viver. No fundo, compreendo-os: não têm que entender a minha raiva e a minha frustração, geralmente plasmada em escritos longos, incoerentes e de fraca qualidade. Meneios de entendimento também são dispensáveis: gentalha susceptível, como eu, não lida bem com eles.

Seria mais fácil dizer, com pacatez, "quero que tudo se foda e todos se fodam" (para manter a concordância). Ser niilista é sempre mais fácil. De momento, prefiro ficar angustiado e perplexo. E ouvir os conselhos absurdos de quem ainda não percebeu que a insegurança é um estatuto ontológico diferente da segurança. E essa diferença comporta atitudes existenciais incompatíveis, que limitam qualquer conselho, "soundbyte" ou "punchline". Gostaria que parassem de me vender pena, soluções encaixotadas e paraísos dourados, como se eu nunca tivesse pensado nisso e pudesse, com um passo de prestidigitação, modificar a panóplia de alternativas ao meu dispôr. O insulto à minha inteligência seria menor e, pelo menos, mais suportável.

Na verdade, acho que me apraz dizê-lo. Quero que tudo se foda. E todos se fodam. Como ninguém lê este poço de esterco, sempre posso debitar enormidades sem consequências de maior. Em todo o caso, se advierem consequências, a minha condição de "pequena pessoa" cumprirá a sua função: recordar-me, ad aeternum, da minha própria banalidade.

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