Das desilusões. Dos desideratos. Dos desesperos

terça-feira, 15 de junho de 2010



"Diz-se que nascemos num suspiro do mundo. Sendo assim, nasceste num solavanco de suspirações sincopadas. E é por isso que não te resolves a recambiar os teus sonhos à proveniência, fajutos e hirsutos que são, sempre luzidiamente escorregadios. Insuportáveis. É, portanto, um resolver de chamas que procuras; não te posso ajudar. Já não posso fazer coisa alguma. Estou disperso em moléculas e átomos de cândidas tristezas". "Cantas e desvias o olhar. Tens medo das nuvens? Tens medo de desejar ser um estar invisível?". "Sim. Talvez tenha apenas medo. Medo por si, daquele que olha o espelho e é acusado de suicídio por negligência". "Então, estás a caminho da loucura". "Estou. Mas é preciso ser doido para ficar louco num mundo tão insano e descarnado". "É capaz. Mas tu lês e sentes e pensas e cogitas e criticas e choras-lágrima-no-canto-do-olhinho, sem que te afastes do caminhobsolescente (gosto tanto desta palavra, deste justapor de semânticas orgásmicas".

Sim. Talvez, noutra vida, pudesse ter sido presidente da democracia do reino republicano de trás-os-mares (como a minha bisavó desejava, no seio do seu âmbito rotundo e encorpado). Mas aqui, neste trovejar de desesperos, estou à espera do autocarro. Chove. Olhos pálidos pintam Rembrandt na paragem, bafejada pela humidade nocturna. Vislumbro a minha vida paralela, uma década, talvez mil, felicidade alcatifada e embutida em arranha-céus de corte futurista, uma velocidade incerta, eis que o autocarro range a sua chegada, justificando, modestamente, um atraso que não é da sua conta. Mais uma vida contada em silêncios, vazios cintilantes e calçadas esburacadas em busca de significantes.

Olho para trás. Nunca fui singelo. Nem puro. Nem sonhador, que os sonhos sempre vieram ter comigo enquanto dormia, e sonho é coisa que não se agarra a dormir, é necessário jogo de cintura, ouvidos alertados para a transitória condição de viver. E agora, que o futuro me reserva uma marmita luciferina, reconheço o meu devir como dejá vu inseguro, com dores nas vértebras, com dores nos neurotransmissores e nos livros por ler. Cansado e acorrentado.

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