quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Chove. O céu cai em borbotões, cobalto transformado em tempestade. É tarde, distintamente tarde num dia amorfo, sem consequências específicas. Um dia pusilânime, como os piores dos seres humanos.
O rádio sibila. Uma cacofonia atordoante, em cujos meandros parece distinguir-se uma mensagem ominosa, imprecada por um locutor qualquer. A voz fabricada esconde tensão. O carro guina, conduzido por um desíginio fantasmático. Ofega, impaciente, mas volta a colocar-se no lugar, alinhado, obediente e espasmódico. A cacofonia parece estabilizar. Conjugado com o barulho do escape, do combate entre a chuva e o pára-brisa, forma uma música estranha.

Chove. Chovia. Não se percebe, já, se era passado ou presente. Ou se, por outro lado, vivíamos o futuro.

O sibilar estaca. Ouve-se "Notícia de última hora" naquele tom casual, ligeiro, de todos os locutores. Qualquer coisa sobre uma bomba que explode. Cripticamente, uma outra observação sucede-lhe, "Plano de contingência activado". Algures, uma onde abate-se sobre várias cidades costeiras. Havia planos. Mas ninguém se lembrou de carregar num botão. Porque estavam todos ocupados a fazer planos, complexos, de escala titânica. Mas apenas planos. E o botão ficou parado, purulento.

O rádio silencia-se. Ao longe, um clarão. Buzinas unem-se à cacofonia. Uma ambulância, depois duas, depois três. Acidentes. Afinal, não era o apocalipse, eram apenas acidentes de viação. Apocalipses familiares e individuais. Tragédias. A rádio volta a troar, desta vez espontânea, "Declaração do Secretário-Geral da ONU às...". Não se ouve a hora exacta; assume-se que a rádio, a essa hora, teleportará os seus ouvidos para Nova Iorque e transmitirá o anúncio em directo.

Chove em surdina. A rádio debita pavores. Lado a lado, mortes anónimas contadas com frieza convivem com a emoção de alguém que decide voar, Ícaro de milhões, porque a sua auto-estima desapareceu nos meandros da liquidez. Não, não é o apocalipse.

0 comentários: