The past, happiness and imagination: a subdued dialogue

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

"Ajuda-me". "De que precisas?". "De sacudir o passado, é uma infecção que parece nunca sarar". "Infecção? Penso que exageras. O passado é uma sombra. É como todas as sombras: frio, penumbroso e ligeiramente antipático; depois de beneficiares dele, deixa de ser confortante, torna-se naquele par de sapatos novos que só usas uma vez. Ironia". "Se é uma sombra, pesa três toneladas, esmaga-me debaixo de recordações em excesso. Não me parece que as sombras sejam pesadas ou esmagadoras, são símbolos da timidez solar. Isto é apenas o passado. De certeza que não há cura?". "Haver, há. Sempre houve cura para doenças introvertidas. Deixa de pensar nelas". "Aposto que nunca dirias isso a uma pessoa expansiva, a um desses espécimes que povoam festas privadas e sonhos maciços". "Não, de facto. Essa pessoa não pensaria estar infectada pelo passado, que o seu presente fosse uma consequência directa de todas as decisões tomadas sem ter consciência de tudo o que estava em causa". "Melhor para ela". "Sim , melhor para ela. O teu pleito é simples. Deixa de pensar que o passado te fez como és". "Se pudesse, fa-lo-ia". "Que te impede?". "O presente. Não posso viver sem a memória daquilo que fui. Arrependimentos, regozijos e dúvidas. Parcelas irreversíveis do meu ADN. Seria eternamente incompleto, sem recordações". "Mas serias feliz, e isso é algo que não podes desconstruir". "Já vivemos num mundo sem memória, e não há registo de que sejamos mais felizes neles que noutros mundos, esquecidos". "Contudo, parece-me que, se não houvesse memória, a impressão de felicidade seria um sucedâneo da própria felicidade; como as pastilhas ou a cocaína substituem o êxtase, a imemória podia consistir num momento extático parado no tempo". "Tudo isso me parece sacrílego. E, em todo o caso, inverosímil". "Será? Duvido que, nesses mundos esquecidos, os seus nativos hesitassem entre um mundo denso de recordações e uma impressão de felicidade". "É uma dúvida que terás de manter; mundos esquecidos são isso mesmo, utopias da imaginação".

0 comentários: